em umbigo não se mexe. coisa que minha avó dizia. não pode enfiar o próprio dedo que dirá deixar alguém ficar futucando. tem a ver com a vida, com seu eu, sei lá, dá azar. desanda. não se mexe em umbigo. coisa dos antigos. meu filho como um recém chegado nessa vida desconhece essa crendice. descobriu esses dias meu umbigo e virou brinquedo. gargalhava enfiando o dedinho, achou muita graça do buraco no meio da barriga. tentou colocar a boca, morder, como os bebês fazem pra conhecer tudo. se ele pudesse arrancava com os dedos ou com os dentes. eu num misto de cosquinha e gastura. nervoso. tá lá meu ponto central da vida que ninguém pode encostar - pra não dar azar - completamente avacalhado cheio de baba de criança. é isso que um filho faz, dá uma anarquizada na vida, mas é fofo, ó que pequetito o tamanho dos dedinhos. é o umbigo da mamãe, mas para de mexer aí. dedo no buraco do umbigo puxa daqui ri dali bate com a mãozinha em cima daquele miolo pulando junto. ei, é meu esse umbigo, e você também tem o seu. levantei a camisa dele, apontei. choque completo. ficou com o indicador minúsculo ali descobrindo que é alguém, olhando pro próprio centro. se dando conta da própria existência. foi tentando explicar que me dei conta. seu umbigo ligava você à mamãe, quando você morava dentro da minha barriga, eu te mandava tudo pra você crescer por ele. a informação foi claramente ignorada por ele, tentando enfrentar a própria papinha do pescoço pra inclinar a cabeça ainda mais pra baixo. mas me ouvir foi impactante pra mim. aquele sentimento inacostumável, que às-quase-sempre me pega de surpresa. ouvindo o que acabou de sair da minha própria boca. poderia até fazer eco: quando você morava dentro da minha barriga. é essa a palavra, que nem existe, mas a única que dá conta: inacostumável. não são poucas às vezes que olho pra cara dele e fico repetindo mentalmente: saiudedentrodemim. como se acostuma com uma coisa dessa? não acostuma. a gente só finge que se acostuma. mas desde o positivo se vive é de absurdo em absurdo. o umbigo tá ali de testemunha. o meu e o dele. saiu de dentro de mim. e eu também saí de dentro de alguém. essa marca tá com a gente o tempo todo, mas pelo azar ou pela memória: a gente evita mexer em umbigo.
me lembro bem da sensação de passar a gravidez toda me dando conta do absurdo que era aquilo. estar grávida. se pensar muito vira um sentimento esquisitíssimo. por certo tempo você têm só a consciência de estar habitada, mas ainda sem anúncios pelo corpo. a barriga demora a crescer. uns 7 meses, pra ser mais exata, só a partir daí ela fica naquele redondinho reconhecível. a gente demora a sentir. começa a sentir mexer já são quase 4 meses. quando o útero cresce a ponto de despontar da pelve em direção ao umbigo. até lá um silêncio que nos obriga a confiar no mistério da vida. e um fuzuê na cabeça. estar com alguém lá dentro é coisa demais. barriga não tem janela mas bem que eu queria poder espiar de vez em quando. saber a quantas anda. a gente vê grávida o tempo todo, pra cima e pra baixo. mas é se tornando uma que bate forte a dimensão de que não é algo ordinário. temalguémdentrodevocê. uma certa invasão de privacidade que um filho trás não começa na falta de tempo sozinha fora. começa desde o começo. essa criatura nunca te deixa sozinha desde que tá lá dentro. pra existir cresce te espremendo de dentro pra fora. leva embora teu ferro tuas vitaminas cata teu dna teu funcionamento cerebral desorganiza seus hormônios modifica a disposição de seus órgãos. se sente em casa, estica as pernas pra cima, tromba elas nas costelas. se acalenta com o barulho do funcionamento dos seus órgãos. o som da sua voz. o balançar dos seus passos. é de outra ordem uma relação com alguém que pra existir se alimenta de suas entranhas. que pra nascer atravessa seu corpo-afora. é de outra ordem. alguém que chega no mundo e não te solta. tá ainda ligado pelo cordão. tá ali amarrado bem no meio da barriga. não despluga voluntariamente. é preciso que alguém corte. o símbolo é tamanho que a corda vira furo. um furo no meio do corpo. umbigo. o sinal do desamparo de alguém que precisou abandonar o ventre. a cicatriz que denuncia que tu é gente só porquê saiu de alguém. dependeu dessa troca pra desenvolver cada sistema. mas é isso, saiu. tá fora. embora um pedaço simbólico disso nunca saia de dentro. talvez por esse motivo, vós e mães, sejam guardiãs de umbigos.
o do jorge tá guardado. embolado numa gase. de modo inconsciente e automático guardei da mesma forma que o meu foi guardado. saiudedentrodemim. e eu saídedentrodela. não quero nem pensar demais nisso. dá um nó. shhhhhhh. em umbigo não se mexe.
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O útero é um vazio só depois que alguém esteve lá.
O nascimento de um filho é a inauguração de um (novo) vazio.
Parir um filho é dar à luz a um vazio (e outro e outro)
citei tanto ana suy no áudio, que chega marquei aqui, vai que ela vê!!!!
o texto de despedida que mencionei:
“oi, pessoal!
vim me despedir 🌀
fui ficando por aqui pois gostava das figurinhas anunciando a chegada dos novos bebês lotus. as figurinhas se foram, continuei. fui ficando por aqui pois gostava de ver os relatos de parto, de ver a galera com dpp próxima parindo e contando como foi. os bebês dessa época já estão crescidos, continuei. fui ficando pois não queria ir embora falar alguma coisa também sobre como foi a chegada do Jorge. de um jeito mais organizado, pensado, bonito, quem sabe. pisquei, e já se passaram 1 ano e 2 meses. talvez eu leve parte de uma vida pra elaborar e reviver essa travessia. um parto é um evento que rasga o tempo. eu achava, de alguma forma, que esse dia ia ser a conclusão de alguma coisa. de um processo. que o parto seria uma espécie de conclusão, o gran finale de um trajeto. é o fim da gestação, claro, uma linha de chegada, sabe? é uma grande ansiedade chegar nesse estopim.
parir é meio que partir. é parto, né. p a r t o. é de onde a gente parte, mesmo. vai-se-embora. dá partida, racha, toma impulso sem saber muito bem pra onde. e vai, por definitivo. talvez por isso perguntem se tu é mãe de qual viagem. a gente tá de ida e sem passagem de volta. e chega em lugar nenhum. só atravessa do jeito que a vida coloca em nossa frente essa linha esse evento esse túnel onde você entra você, e sai outra coisa. que ainda vai descobrir o que é. vai ter que se inventar. enquanto descobre, inventa, recebe alguém nos braços. é um evento irreparável de dois nascimentos. o do filho e o nosso. já que são dois, o que eu posso dizer então sobre o nascimento e parto do Jorge, é que ele é Jorge mesmo. forte, corajoso, grande, corpulento, resistente, decidido, imprevisível. e lindo, podre de lindo. demos o nome do filho de Jorge e eu esperava não ser cortada por nenhuma espada? Jorge chegou como queria e como devia chegar no mundo. não teve spinning babies reza óleo massagem acupuntura chá de parteira homeopatia posição indução tempo contração chuveiro nem santo que falasse: bora Jorge, sai daí. ele chegou nesse mundo na madrugada de lua cheia que quis. como quis. essa história ele que conta, quem encarna é ele. e como bom Jorge ele chega cortante. o que eu posso dizer sobre o meu parto é que esse dia perdura o tempo, ainda me vejo nele. revisito sempre que posso pra reconhecer ali a coragem, a força, o tamanho dos medos que enfrentei, do amor que senti, da coisa inavisavel que é trombar a vida de cara. é um assombro. a vida crua que chega com encanto e angústia em porções cavalares e nosso corpo puerpério chega despenca murcho pois não dá conta. revisito esse dia pra me lembrar da possibilidade de contar ele de tantas formas. a forma como a gente narra pode mudar com o tempo, e no fim das contas é isso muda tudo. me lembro da primeira vez que contei sobre o parto. a forma como me demorei em cada detalhe dificultoso como se fosse uma forma interna de justificar, a mim mesma, a cesárea. como se eu dissesse “foi cesárea mas eu juro que foi difícil pra caralho antes, que foi feito tudo que podia, que minha equipe sabia o que tava fazendo, que durou não sei quantas horas dores isso aquilo”. a quem isso interessa? essa justificativa não era pra ninguém senão pra minha própria ideia de que um parto se idealiza. não. um parto se vive. é importante tomar cuidado ao desejar um parto humanizado, cuidado o suficiente para que não seja tu mesma a pessoa a se desumanizar ao ver um desdobrar diferente do que imaginou. que não seja tu mesma a se ferir. a tornar essa uma lembrança violenta. retorno a tempo ao significado das coisas. é o evento que marca um encarnar no mundo. ele há de ser como é. se assegure no que for possível, confie no que não for. a equipe Lotus é maravilhosa, disso todas sabemos e por isso estamos aqui. buscamos as garantias possíveis de um ambiente seguro, o que já é mais que suficiente. não interessa se preocupar com quem vai estar no plantão, todas vão ter mesma conduta, se certifique só que tu esteja. presente. de corpo cabeça e alma. parir é ato intransferível. e talvez por isso doa tanto em cada parte do corpo.
ninguém vai pegar essa mala e partir no nosso lugar. desde lá, daqui, só posso dizer que essa viagem tem sido maravilhosa. e só melhora. o Jorge é incrível. e o evento que trouxe ele ao mundo foi a coisa mais incrível, forte, ressignificadora, corajosa, difícil e BONITA que eu já vivi nessa experiência terrena. ainda que ali eu não pudesse enxergar.”
um ano e dois meses depois deixa de ser um pouco sobre a dor de ir pro quarto sozinha com nenê na uti
deixa de ser um pouco sobre a frustração dos desdobramentos
deixa de ser um pouco sobre a sensação de nadar nadar e morrer na praia
um ano e dois meses depois eu finalmente consigo devolver esse dia pro jorge.
pra como ele assinou seu próprio encarnar.
livrar essa chegada em certa medida do peso dessas dores. que são imensas.
mas o inaugurar dele no mundo é maior que todas juntas.
Conceição conta aqui sobre o umbigo dela:
em tempo: tô preocupadíssima com meu umbigo!!!!!
Que texto Lis! Mexeu comigo nas entranhas umbigo adentro. ❤️
Essa news acabou de fazer parte de um novo livro porvir. Sua escrita foi inspiradora, me ajudou em uma poesia que tava aqui meio agarrada.
E sobre um nome, me considero Papofurader hahahaha