acordo com os peitos empedrados junto ao corpo como se fossem paralelepípedos. dois. costurados abaixo da pele. o peso e a ardência parecem o de exatos um ano atrás. não apenas pela dor de mesmo tom, mas a sensação de estar de volta no tempo se deve também ao cenário que segue quase inalterado. me sinto num dejavu de mal gosto. levanto na mesma cama que fica recostada à parede. me miro no mesmo espelho, dessa vez, no entanto, meu reflexo já não me assusta. há em mim alguma dignidade que era inexistente em uma recém parida. atrás de mim uma parede pintada até meia altura de um verde musgo que combina com exatidão com a cor da cômoda. preciso dar jeito nos peitos que pendem sobrecarregados no corpo. até andar dói. pela casa ainda restam os balões murchos do aniversário de um ano, celebrado aqui, quatro dias atrás. não fosse uma lembrança dessas de celular não daria conta da coincidência. a galeria de fotos me lembrou que há um ano exato eu estava a lidar com as dores do início de amamentação. e que há 06 anos atrás eu conhecia a cidade de Potosí, em um mochilão pela Bolívia. as duas versões passadas parecem impossíveis de serem a mesma pessoa. mas os efeitos de um ano passado já volta a unir no mesmo corpo essas duas figuras que agora me habitam. a mãe e a mulher pararam de se degladiar. e agora decidem qual destino dar aos peitos que ainda transitam nos dois mundos. se foi armadilha do inconsciente, saco cheio do cansaço, o empurrão do completar de aniversário do filho, não sei. mas inicio o desmame um ano exato após a apojadura.
fico pensando sobre quantas coisas mudam em um ano enquanto procuro um copo pra aliviar o peito e evitar uma mastite. me sinto mais uma vez em um dejavu de mal gosto quando migro pra sala pra fazer minha função mamífera de ordenha. as pedras vão se dissolvendo e mil jatinhos minúsculos de direções variadas saem rumo ao copo e se acumulam no fundo dele formando uma espuma rala e esbranquiçada. parece desinfetante ajax. tirar leite de pedra é coisa que mãe sabe fazer. as duas lembranças do celular não saem da minha cabeça. as pedras do peito. as pedras amontoadas de Potosí. continuo ordenhando para driblar a dor.
ordenhar. foi essa palavra que usei lá atrás e fui corrigida pela doutora: esgotar. não, doutora, ordenhar. é o r d e n h a r. não me amenize o verbo, me sinto mesmo uma vaca. um ano atrás foi quando o leite desceu de vez, pingava leite pela casa inteira mostrando meu rastro, leite escorrendo pelo corpo no banho, poças de leite abaixo de mim enquanto dormia, as blusas todas molhadas de leite, manchadas de leite, o pinga pinga sem fim do corpo que não sabia ainda quanto aquele bebê mamaria regularmente e mandava tudo de uma vez como se eu tivesse 10 rebentos. me fadigava de tanto leite e por isso repito a palavra toda vez. leite leite leite em toda parte. me sentia uma mamífera de primeira categoria. mas uma mulher de quinta. ter sua anatomia relembrada à condição de bicho leva embora alguma dignidade. não sabia quantificar quantos seriam os dias de leite lágrimas e sangue, mas desejava que em algum momento a mulher que sou se sentisse a vontade nesse corpo líquido de novo. enquanto esse tempo não passava, me inclinava de alma inteira à meu filho.
foi não sabendo quanto tempo duraria que mergulhei nessa entrega. cedi meu ser. ordenhei. verti em choro. permiti que durasse quanto tempo fosse possível. e foi tempo. mordi almofadas pra sanar a dor. abafei grito. um bebê de língua presa tinha uma pega de estraçalhar mamilos. até que seu freio fosse cortado, aos 17 dias, foram inúmeras os dias de carne viva em mim. fiquei com dó do corte de bisturi. mas feliz pela possibilidade de amamentar sem feridas. internamente abstraía pensando que ele nunca falaria como eu. o odonto na sala de espera avisava: não preciso nem ver a língua dele pra saber que é presa. com você falando já percebo. é genético. todos seus filhos terão. cresci marcada pela língua que não faz som de r. substitui por som de g. na escola pedia para as crianças pararem a zoação e ouvia de volta. “pagar? não te devo nada!”. escrever é poder dizer parar sem agarrar em consoante nenhuma. dá até vontade de gritar agora tudo que não sei pronunciar. arara. araraquara. piraquara. tiririca. siririca. mas a palavra sem r nenhum que tem me amarrado a língua é outra: amamentação. aprender a falar de outro jeito é problema que meu filho não vai precisar lidar. desde os 17 dias de vida têm língua solta e fome. muita fome. que saciei saciei saciei, contornando as angústias de ter corpo partilhado. a dor amenizou. me acostumei à função cotidiana. mas agora me dou conta de que não quero mais. nossa relação já pode ter outros endereçamentos. sem rodeios. assim. não quero mais.
pra mesma doutora que falei ordenhar. falei isso: tenho concluído que não quero mais. ouvi de volta o beabá. a importância do aleitamento prolongado. o questionar dos motivos, como se eu não tivesse ponderado todos deles. as justificativas corretas, mas mesmo assim insuficientes pra dar conta da exaustão. gostaria de um direito à réplica. não o fiz pois entendo a importância de sua fala. mas gostaria de grifar que têm elaborações de saúde que não cabem numa consulta, nem num texto. se esse leite é ouro e se seu uso prolongado previne cerca de três milhões de coisas, se sobre os ombros dessa decisão repousam o futuro da saúde de meu filho, das crianças, diabetes, colesterol, obesidade previnidos, se assim não lucram as empresas de fórmula, se é um plano de saúde que não me custa “nada”, apenas continuar. se é ouro dessa forma e se disso depende a melhoria da saúde da população mundial, se isso reduz os gastos com doenças, remédios e sei lá mais o quê, por quê então essa responsabilidade não é carga dividida com todos? chama pra conversa aí então, doutora, chama as empresas, os horários de trabalho, chama pra conversa as redes de apoio, e mostra que na outra ponta dessa promessa de saúde, ali, esquecida, de onde pende o ouro líquido que nutre a humanidade tá bem ali a mina-mãe: sua alimentação expropriada, suas horas de sonos não dormidas, seu corpo desalinhado, e o peito vertendo pro chão. mostra o último ano de madrugadas vendo o dia amanhecer da janela enquanto se fadigam os mamilos. a promessa promissora de saúde afundada em duas olheiras. privada no fim das contas do próprio relacionar com o filho que dali se nutre. nutre de quê. se nutrir não é só leite. ainda que leite tenha a ponto de empedrar em todo resto, nas madrugadas, me sinto esgotada. tal qual Potosí. a cidade boliviana que cedeu prata pro mundo, riqueza inesgotável que ergueu cidades. de onde galeano afirma que saiu tanta prata que daria pra construir uma ponte da Bolívia à Europa e ainda sobra. potosí tão farta hoje é só um amontoado de pedras restantes da mineração. pedras tais quais as que carrego agarradas ao corpo abaixo da pele enquanto meu ouro líquido finda seu ciclo. no fim da consulta, mesmo tendo silenciado a réplica, recebo a tréplica: nem tudo na maternidade é leve mesmo. a qual maternidade pretende se referir, não sei. mas a minha não pretende rimar com anulação.
me lembro constantemente da paisagem de potosí. penso como ela seria, se em dado momento, se sessasse o explorar do minério. a prata acabou. mas seguem até hoje quebrando quebrando e quebrando montanhas pra sugar qualquer mineral que produza baterias de celular. ouvi isso quando fui lá. nas noites insones penso que nesse mundo alguns corpos e países funcionam sob uma mesma lógica. não é à toa. se sobre eles reside o mesmo olhar. colonial. nem tudo é leve e é esperado que tudo se suporte. a mãenatureza não se chama assim apenas porque dela reside toda abundância. todo nutrir. toda fartura. toda vida. mas porquê dela também se bebe achando que a fonte jamais se acaba. três dias que meu filho não mama mais. agora experimenta meu colo em uma nuance que não lhe era possível antes. brinca em minha companhia. me abraça pra dormir. aprecia o meu nutrir na comida que tanto gosto de cozinhar. no meu amor que não se esgota. meu sono se recupera aos poucos, junto aos pensamentos frescos que pareciam ter sumido de minha cabeça. me sentia sempre um passo atrás em qualquer conversa, agora meus neurônios parecem brincar de fazer sinapses. gosto da parte de mim que sinto retornar quando sustento a decisão de não ceder à exaustão. em corpo de mãe e de natureza, também se seca fruto. mas quase sempre ainda há sombra. pra que ambos não se esgotem, é preciso também saber a hora de parar.
no meu riso que solto durante o processo, eu mesma percebo: continuo abundante.
a maternidade é um movimento bonito de ponderar, reponderar, elaborar, decidir. aqui, falo sobre a minha. não pretendo dar conta da maternidade de mais ninguém pois essa, a minha, já me dá muito trabalho. mas é um prazer dividir. elaborar as decisões e movimentos também através da escrita. dar narrativas. e descobrir nesse processo todo que as respostas vêm no nosso movimentar. não tem receita de bolo. é vivo. vivo. vivo muito. vivo. i’m alive.
esse texto de ana suy, que é tema de que levo pra análise desde 6 meses atrás.
tempo que levei pra eu desmamar a mim.
QUEM É QUE MAMA?
Os bebês humanos nascem sem corpo. Sim, bebês humanos nascem com organismos funcionando, mas sem corpo. Nascemos marcados por uma impotência para a vida, por uma impossibilidade de nos virarmos.
Mãe é o ser que nos dá corpo. Nos dá o corpo dela, assim, literalmente. Nos oferece a subjetividade dela. Antes de ser mãe me parecia um exagero dizer que para uma mãe de recém-nascido tomar banho era luxo, mas é isso mesmo. Lavar os cabelos, então, vish.
Um bebê vai ganhando o seu corpo só depois de ganhar o corpo da mãe. É o corpo da mãe que nos constitui, antes de tudo (aliás, não é de lá que costumamos sair? [Digo aqui que "costumamos" porque nem toda mulher que dá à luz se torna mãe e nem toda aquela que se torna mãe, dá à luz]. Apesar do puro horror que pode ser isso de mal poder tomar banho, para as mulheres que têm filho, a coisa é meio via "credo, que delícia". Um misto de angústia com uma intensa satisfação. Uma mescla de socorro-alguém-me-ajude com venha-aqui-e-não-saia-nunca-mais-coisa-mais-fofa-do-mundo!
Uma mãe se satisfaz com seu bebê, se tudo estiver bem.
Falar da dependência do bebê em relação à mãe, é secundário. O bebê depende da mãe porque a mãe depende do bebê. Eles se dependem. Quando uma mulher mãe amamenta, ela também mama algo em seu bebê.
Satisfação, prazer, alegria!
O momento do desmame acontece, então, via mãe. E preciso desmamar a mãe, antes de tudo. É importante que uma mãe sinta saudades de seu corpo feminino, em algum momento.
Que ela queira seu peito para si e seus prazeres de mulher, de novo.
É só como consequência do aparecimento da mulher na mãe que uma mãe pode sustentar seu desejo de desmame - que é também uma aposta em seu filho, que ele já tenha o seu próprio corpo, não precisando mais do dela assim, tão literalmente.
Se uma mãe mama demais seu filho, se satisfaz demais com seu lugar de mãe de bebê, dali ele não pode sair. E nem ela.
É a mulher na mãe que pode fazer furo nessa relação e liberar cada um dos dois para encontrar satisfações diferentes em outros lugares.
Desculpa o trocadilho, mas que pedrada de texto!