antes que a vida comece está tudo preenchido. uma casa onde só cabe esse corpo pequeno e que expande suas paredes a medida que o corpo cresce. sob medida. não mais que o necessário para que não sobre espaço e não se perceba só. não menos que o necessário pra que não seja sufoco. o bastante. e só não está. é um corpo que habita outro corpo. um corpo maior que é corpo-casa. o corpo menor cresce e as paredes crescem. útero. entre o corpo e a parede: líquido. quente. conforta, ameniza impactos, suaviza as vozes externas, embala. não é preciso que ninguém nine se tudo ali é aconchego. não tem frio. não tem fome. não tem lágrima. logo esse acalento acaba. é preciso nascer.
nascer é experimentar a falta pela primeira vez. por isso já se nasce chorando. experimentar a claridade frio vozes desconhecido cortar cordão umbilical experimentar sair do corpo-casa pela primeira vez deve ser de uma dor tamanha um trauma uma barbárie que a vida nos poupa de lembrar. é com choro que se busca o próprio ar. precisa aprender a respirar. sente fome. chora. é preciso aprender a comer. sono. chora. é preciso reaprender a dormir. e assim vai. a gente nem lembra. mas aprende. quem ampara jamais esquece. tudo isso requer esforço. desconforto. readaptação. a cada coisa que falta até se tornar coisa sabida leva tempo. e viver é esse movimento enquanto esse tempo passa.
viver é ir indo de falta em falta. até morrer.
pois morrer é outra completude. acabam-se as dores. as lágrimas. a fome. o espírito livre de um corpo limitado se encanta.
a linha do tempo que se forma entre um útero e uma cova é feita de vazios.
a gente sente isso na pele. mas quando a pele não é nossa dói também. dói na gente a limitação de quem a gente ama. limitação de filho, então. vish. já ouvi tanto e agora que entendo passei a falar: preferia que doesse em mim.
e é verdade. não inventaram nada pior que ver filho sofrer. me dá pra cá essa doença. esse ranho. essa cólica. essa dor de dente nascendo. dá pra cá esse tombo. essa assadura. esse arranhão. dá pra mim essa vacina. essa febre alta. essa agulha. essa falta de apetite. esse joelho ralado. essa dor de saudade. esse coração partido. mundo. afora as mães enchem a boca pra falar: só quero ver meu filho feliz. “só”. como se fosse pouca coisa. ele há de ser feliz. mas há de sofrer também.
me dá pra cá esse sofrer. esse vazio aí, que meu filho tá sentindo, e que sei que há de sentir ainda mais. me dá. não. peralá. que essa voz nem saia da minha cabeça. que eu cale ela a tempo tamanha loucura.
quem já foi corpo-útero tem que se segurar na tentação enfiar de volta na barriga. de preencher cada espaço. se o filho já saiu do útero, tira esse filho da boca. engolir filho não o devolve pra lá. uma mãe que devora priva ele e a si da vida. eis o labirinto. esperar que a seu filho nada falte, é dar a ele a maior das faltas.
só falta algo pra quem vive. mas viver é tão mais que essa falta, que eu agora desejo o oposto: então que falte a filho e a mãe e a todos amém. que haja espaço. lacuna. pra voltar ao movimento da vida. tira esse filho da boca e bota de novo no braço. dá no colo de alguém, quando pesar, vez por outra. você já não precisa ser tudo. faz tempo. de teu útero-mundo já saiu. resta tirar lá da mira do teu desejo de teu completo gozo e colocar no lugar de filho. pra sobrar espaço pra satisfação reencontrar mira.
com útero livre é possível parir ainda tantas outras coisas. esse filho tá no mundo. você também tá. há mesmo de sofrer, claro, mas isso é só detalhe. dente só nasce em quem cresce. só rala joelho quem corre. só adoece quem convive. quem brinca. quem conhece mundo gente coisa planta dia chuva bicho. com mãos com olhos com boca com corpo. só sente dor quem vive. no corpo ou no peito.
o dia já vai raiar de novo. é o terceiro que vejo amanhecer. já são três noites que o primeiro dente, e algum outro primeiro vírus que seu corpo não conhecia e agora tenta imunizar não permite que meu filho durma. essa é mais uma das vezes que ele e eu descobrimos juntos que viver tem dessas lacunas que nem beijo de mãe preenche. o céu amanhecendo é tão bonito que até venço a tentação de pensar que gostaria de pegar a dor dele pra mim. me devolvo à humanidade. sou só mãe. não tudo. me contento com o que alcanço: braços de acalentar e medir febre. a nós dois é o bastante. pra todo resto só o tempo.
o tempo vai continuar a passar pra que eu precise emprestar a ele cada vez menos meu corpo pois desde que saiu do meu vem ganhando o próprio.
desejar que um filho não sofra seria como desejar que ele não viva.
os passarinhos tão cantando e o céu tá cada vez mais azul. o dia já nasceu. o dente também nascerá, em alguns dias, talvez. depois disso ele vai levar um tempo a voltar a ser banguela. com sorte uns 80 anos. até que todos os dentes nascidos caiam. no fim da vida, veja só. talvez volte a usar fraldas. a ser frágil. talvez desaprenda tudo que aprendeu. o início e o fim.
só o útero e a morte. completos.
amar continua sendo um jeito bonito de dar destino pra todo vazio que a gente esbarra do meio desse caminho.
Oie, gente! a news hoje veio à tarde pois a mami está um ba-ga-ço! pra hoje uma reflexão feita em uma das muitas madrugadas em claro da última semana. e é assim que vou tecendo um livro, hehehehehe. semana passada eu pedi umas recomendações no coisinhas, mas ninguém retornou com nenhuma, então fiquei com uma duvida: vocês leem até cá embaixo? se você responder esse e-mail eu recebo a resposta. ou pode comentar na news.
se esses quadros cá de baixo for meio nada a ver, eu posso pensar outros. se já foi útil pra alguém alguma sugestão daqui, ou se você costuma ler até o final: me conta! prometi mês passado uma coluna com umas coisas de quem lê e me manda, mas ainda não organizei. mas virá! quero que seja uma troca maneira, uma rede.
beijos!
a coisa foi tão punk que vou aproveitar pra indicar os livros, sim no plural, que li enquanto ninava o Jorge nessas madrugadas infinitas da última semana de virose-dente-salto. um outro ainda estou terminando, então trago em outra semana. por hoje os dois lidos que preencheram essa semana. salve nas mãe.
Torto Arado.
escritor: Itamar Vieira Junior
é um romance! se passa em uma comunidade quilombola na chapada diamantina. tava a tempos querendo ler, e me emocionou-marcou muito. parte da história uma irmã conta. a outra outra irmã conta. e a última parte um espírito encantado conta.
Velhos.
escritora: Alê Motta.
se você gosta de livro de contos pequenos, com um toque de humor, sério, bom demais. basicamente um livro de contos sobre velhos! isso mesmo, pessoas no fim da vida, perto de sua completude.
deixo aqui um dos contos:
Emoções
Tomei um banho quente, escovei e ajustei a dentadura, penteei meus cabelos ralos e coloquei o arquinho. Engoli os comprimidos da manhã, café com leite, pão e requeijão. Escolhi minha roupa mais arrumada – saia marrom e casaquinho xadrez.
Fui para a varanda esperar. Meu neto tem problemas com horário. Essa geração é muito enrolada.
Vamos de carro para a zona e meu neto dirige muito mal. Acelera-freia-desvia e eu agarro no puta-que-pariu cinza-bebê do carro que ele tem porque eu cobri a metade das prestações que o pai dele não pagou. Sim, meu filho tem problemas financeiros. A geração dele também é enrolada.
Hoje é um dia de ouro, muito especial. E esses garotos vêm com calças caindo nas bundas, camisetas velhas-coloridas?, e essas garotas de blusinhas-e-calças-grudadas-indecentes? Não há respeito.
Tenho oitenta e nove anos. Cada passo que dou é lento, apoiado pela bengala que era do meu finado marido. Todos falam que meu voto é desnecessário.
Vovó, na sua idade não precisa...
Mãe, tem certeza?
Vizinha, os políticos não merecem!
Comadre, pra quê esse sacrifício?
A senhora tem quantos anos?, nossa!
Eu quero votar. É meu direito. Lembro da época que eu queria e não podia. Só os homens podiam.
Com meus passos lentos entro na sala e cumpro meu dever cívico. Fico emocionada e quase choro. Meu neto é um dos garotos com as calças caindo na bunda. Não fez a barba, não cortou o cabelo. Mas segura o meu braço com delicadeza e de novo estou com meu velhinho, que já mora com Deus no céu, viemos juntos votar, e ele está tão lindo de terno, vamos seguindo de braços dados pelo corredor e todas as mulheres olham para ele. Eu fico emocionada e quase choro.” (p. 31/32)
Eu leio tudinho. Inclusive amo o papo furado.